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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Márcia

Nasceu uma rosa no asfalto
Justamente ali
Onde os sapatos de tantos idiotas
Trituram os melhores projetos
dos que sempre sonharam sem pudor
numa orgia diurna de apostas e esperanças.

Nasceu uma rosa no asfalto
Exatamente ali
Onde as paredes de concreto
Delimitam os cérebros e a liberdade.

Precisamente ali
Onde crescem os filhos do plástico 
e da Coca-Cola
Precisamente ali
Onde o ferro domina
e o Capital devora.

Nasceu uma rosa no asfalto
Ali
Onde as emoções nascem nos computadores
E o amor falece nas mesinhas de escritório.

Exatamente no asfalto
Essa terra estéril
Essa terra própria
pra correrias inúteis.

Nasceu uma rosa no asfalto
E todas a olharam
Mas só eu a vi.

E fui eu que a colhi
E a guardei com segredo e cuidado
Num vaso poderoso
chamado paixão.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Made in night

Noite
manhã dos meus fantasmas
Eu tenho medo.

Tenho medo dos mortos
da cidade morta
Tenho medo dos vivos
Tenho medo de mim.

Porque Lúcifer caiu da lua
e se esparramou no meu quarto.

Cada estrela
é um rosto dos que não me amam
Cada nuvem
a lixeira dos meus erros 
E as horas
são meus olhos que me fitam
Ó lua, minha mãe
O céu está em chamas.

sábado, 15 de agosto de 2015

Não

Não quero
essa vidinha retilínea, rasa, plana
cheirando a Omo
Essas emoções civilizadas
Essas pessoas regulares
Esse condicionamento fisiológico.

Não quero
Esse perpétuo "vai melhorar"
Essa infundada e infindável espera.

Não quero
Essa estupidez consentida
Esse consenrimento tácito e oficial
Esse romantismo desesperado
feito de um amor que já ruiu.

Não quero
Este mundo em fatias
Disputado por loucos famintos
Essas bundas de domingo
nesses bancos domingueiros
com esses papos de segunda-feira.

Não quero
Esse suicídio prêt-à- porter
Tão lento e mascarado que ninguém vê
Esse delírio cinematográfico
Esse conformismo epidêmico.

Não quero
Esses descobridores do óbvio
Esses comentaristas sem comentários
Essa vegetação capilar
cobrindo testas estéreis.

Não quero
Essa comicidade gratuita
Esse risinho viciado
Esses palhaços sem circo.

Não quero
Essa bestialidade perfumada
Esse fedor desodorizado
Essas feras sem jaula

Não quero
Esse credo monetário
Essa eucaristia de número
Essa religião de papel.

É tudo isso que eu não quero. 

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Obsessão

São as pombas
São as bombas
São as trombas da criação.

São os ratos
São os fatos
São os tratos da inanição.

São os rombos
São os tombos
E os lombos da perdição.

São os casos
Os descasos
E os vasos da imensidão.

São os passos
São os traços
E os fracassos da multidão.

Muito raras
São as caras
Não as taras da ocultação.

Muita estética
Muita técnica
Nossa herética visão.

E que pena
Não havia cirurgia
P'ra agonia do coração.

São Marias
Avarias
E utopias de pés no chão.

E os amores
São clamores
E favores da tua mão.

E a procura
Não tem cura
Por ser pura obsessão.

sábado, 8 de agosto de 2015

O percurso de uma noite sem lua

Acendi mais um cigarro
Atravessei a ponte
O Sena já dormia profundamente
Escondendo no seu lôdo
O desespero dos seus suicidas.

Parei por alguns instantes
em frente ao Hôtel de Ville
Observei bem todo aquele monumento
Admirei o efeito das luzes
E prossegui a caminhada.

Pisei o calcário da Rue de Rivoli
E como um intruso
percorri-a bem devagar.

Flanei por outras ruas
E reduzi o passo na Saint-Denis
Caminhava lentamente
Dava passos calculados
Como se a deflorasse cuidadosamente
com o meu andar
Para mim, aquela era a primeira vez.

Desfilava por ali
Escoltado de perto
Pelos luminosos indiscretos
dos porno-shops.

Mais adiante
Algumas e certas mulheres
Negociavam com a fisiologia
e expunham audaciosamente seus corpos.

O prazer custava trezentos francos
e a AIDS era de graça.
Et alors, tu viens?

Nas calçadas 
Erguia-se um exótico santuário de putas
que abria as suas portas
que abria as suas pernas
para os inveterados adoradores do escuro.
On y va?

Entrei no Hard-Sex
e senti-me perdido
no meio daquela densa floresta sexual
Os pênis eram árvores robustas
e as vaginas suas raízes profundas.

Caí em algum buraco
daquela geografia do desejo
e fiquei sujo com a poeira da minha solidão.

Continuei na Saint-Denis
As esplanadas dos Cafés estavam repletas
Os casais trocavam beijos e carícias
entre goles de panaché.
Senti inveja e reconheci
que naquele comboio de boêmios
eu era um dos clandestinos.

Para disfarçar
Tomei um café
O café custava dez francos
e angústia era brinde da casa.

Fui parar numa praça qualquer
sentei-me no banco
para esperar a luz do sol
e assistir às exéquias da noite.

Quando o sol ameaçava abandonar
o útero do infinito
para viver entre nós
Resolvi voltar.

Acendi o último cigarro
Atravessei a ponte
O Sena já estava bem desperto
preparando o seu leito
para receber o primeiro Bâteau Mouche
Alisando o seu lôdo
para acolher o próximo desesperado. 

Paris, 12 de Janeiro de 1988

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O amor - esse desconhecido

Amor
Não quero pronunciar-te 
com medo de envelhecer-te.

Amor
Palavra senil
que já conheceu tantos lábios.

Navegaste no cuspe dos reis
Deslizaste na língua das rainhas
Escalaste os dentes dos nobres
e desabrochaste forte na boca dos miserÁVEIS.

Quantas vezes te prenderam num papel 
e te chamaram casamento
Quantas vezes te arrancaram do teu lar
o coração
te espremeram entre um par de pernas
e te chamaram sexo.

Amor
As alcovas estão manchadas por um nome
que pensaram que fosse o teu.

Já te puseram tranças
Pintaram-te os lábios
e te chamaram mulher.

Amor
Em quantas espécies de lágrimas
já te molhaste?
A propósito
Vi-te escondido nos olhos da minha mãe.

Quantas vezes
quis cumprimentar-te
e me calei 
por não saber o teu nome.

Amor 
tens tantos pseudônimos
que ainda não sei como te chamas
Alguém roubou  a tua Certidão de Nascimento.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O cemitério dos sonhos

Queria ser um desses poetas fulgentes
Falar dos lagos reluzentes
Dos oblíquos raios da loura luz
Do mundo plano, sano e sem cruz.

Queria ter o fulgor
Para roçar todos os ângulos do amor
Para cheirar rosas purpurinas
Para gostar de coisas pequeninas.

Queria poder ainda esperar um primavera Venturosa
Colher uma estrela saborosa
Degustar o mel do silvestre arvoredo
Pensar que não é tarde - ainda é cedo.

Queria ver meus sonhos ressuscitados
Dói-me vê-los assassinados
Por que alguém os mataria?
Talvez para que o meu querer seja apenas utopia.