E aqui estou
Inquilino da morte
Nesta noite sem lua
Nesta ampliação do nada
Colecionando medos
E matando estes sonhos
vagabundos
Parasitas da minha angústia
Procuram-me a esta hora da noite
Estas perspectivas
despidas de esperança
No vácuo histérico do meu tórax
Adormece uma alma doente
e poluída
Eu sei que mereço muito mais
Mas a sorte que me cuspiu
no rosto
Só me deu letras e palavras.
Poema© :JoaquimESTEVES
Deixo-vos tudo
Fiquem com tudo
Fiquem com as filas dos bancos
As buzinas dos carros
A estupidez dos passantes
A pressa dos perdidos
O alarido dos tontos
A violência tranquila
Deixo-vos tudo
Fiquem com tudo
Fiquem com a indiferença
dos vizinhos
A ganância dos banqueiros
A podridão das almas
A loucura dos normais
O trabalho compulsivo
A proibição do grito
O progresso inútil
A coerção dos espíritos
A multidão histérica
Deixo-vos tudo
Fiquem com tudo
Fiquem com a democracia
arbitrária
Os direitos feridos
O sadismo dos burocratas
Os crimes dos políticos
As cabeças doentes
A falta de sentido
O absurdo inchado
A injustiça feroz
As cartas marcadas
As alegrias compradas
O dinheiro psicopata
A fome dos inocentes
E a morte dos puros
Deixo-vos tudo
Fiquem com tudo
Fiquem com esse zoológico
de ilusões
Esse faz-de-conta viciante
Fiquem com o circo do poder
E o horror de quem manda
Fiquem com tudo
Com os clitóris amputados
Com os homens-bomba
Com as bombas dos homens
Fiquem com a beleza que engana
E o prazer que escraviza
Com o hálito dos desesperados
E o sorriso dos falsos
Só vou sentir saudades
Do ritmo das manhãs
Da autoridade do sol
Do cheiro do café
E dos acenos da esperança.
Poema© :JoaquimESTEVES
Passeio os meus sonhos
Numa rua deserta
Sofro com o sopro do vento
Eu sou em carne viva
Eu sou uma chaga aberta
E usufruo a plenitude
de uma ferida inteira
Tenho receio das fêmeas
E do barulho
Desconfio das festas
E da primavera
Agito-me e repouso
no solo
do meu próprio peito.
Poema© :JoaquimESTEVES
O sol pariu o primeiro raio
Estou cego
por haver tanta luz
Hoje é tarde
Prossigo impulsionado
pelo calor dos bueiros
e pelo sopro das galerias
Sou uma composição química
e moro
nos subúrbios remotos do paraíso
Hoje é tarde
É dia de extirpar o coração
e viver apesar dele
Estou aquém e além dos outros
e não me seduzem mais
as conclusões da plebe
Sedimento os meus sentimentos
e quero tudo
E quem sabe
amanhã de manhãzinha
aguarda-me o estranho silêncio
da minha execução.
Poema© :JoaquimESTEVES