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quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Sonho veloz


Queria nascer com alguns anos
Forte e belo 
Numa pradaria aberta e calma

Filho de um enigma bom
Sobrinho travesso de um tio cósmico
Caído sem gosma da vagina verde
de um vegetal inconsciente
Parido sem dor
no horto
do único asteróide verdejante do espaço

Livre
Livre
ao ponto de morrer
ao avistar traços
da espécie humana.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Noites cariocas

Chove torrencialmente no Rio
Brilham centelhas de coxas
No fundo do asfalto

A multidão caminha muda
A noite é um gigante

Há um lixo vagabundo
pelas ruas da cidade 

Estou torrencialmente só no Rio

Sou dos que sempre levantam o focinho
E mesmo em dias de chuva
Eu vejo os astros

Não suporto a imponência do mundo inteiro 
e menos ainda
os cacos aguçados deste quebra-cabeças.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Falso adeus

E um dia
Sob os auspícios de um sol bizarro
Entardeceu para Sempre

Nesse dia
Expulso da luz
Em exílio inédito
Pousou os seus olhinhos alegres
Na paisagem infame
De uma escuridão iníqua.

Primeiro de Maio de 2005/Médicos portugueses assassinavam o meu pai. 

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Rotinas insólitas

Paira sobre nossas cabeças
o rastro de uma névoa tênue e fugaz
quase tão invisível quanto o nada

Tudo é tão incerto 
quanto o não dito

O mundo faz as caretas de costume
e é feio e assustador 
como as verrugas da bruxa

Não há sentido
no fluxo desatinado 
dos que dão passos firmes
sobre as pedras regulares da civilização

Apesar das evidências que nos esmurram a cara
prosseguimos

Avançamos ensandecidos
pisando raivosamente o peito 
dos nossos cadáveres mais diletos
O chão é um tapete de dor e morte

Reconheço pelas feridas
o corpo desfigurado da minha última esperança
Arranco a espada fria
que trespassou a carne do meu amor mais robusto
Escorrem as lágrimas dos meus olhos de menino
Tenho as rugas e a palidez
Tenho o cansaço e as calças curtas
Tenhos os cabelos brancos 
e a brancura dos sonhos intactos

Estou vivo
Estou morto
Percuto o espaço
fingindo-me desinteressado
em busca de um sinal

Por instantes
Enlouqueço
E como os que já desesperaram
bebo o sumo da mais imaculada loucura
e sento-me na praça à espera de Deus
Deus é para os que já não têm mais cura 

Apesar de todos
trago nos ventrículos uma esperança genética
tão saudável quanto a minha boca
 
Paira sobre nossas cabeças
o rastro de uma névoa tênue e fugaz
quase tão invisível quanto o nada

Tudo é tão incerto 
quanto o não dito

O mundo faz as caretas de costume
e é feio e assustador 
como as verrugas da bruxa

Não há sentido
no fluxo desatinado 
dos que dão passos firmes
sobre as pedras regulares da civilização

Ofendo o céu com a ponta do meu olhar
Procuro um sinal.

Rio, Maio de 2005

Poema© :JoaquimESTEVES

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Súplica

Dois anos com você na estação
Cadê o trem?
Tantos trens já passaram
E eu já perdi o meu
E tenho que ir para algum lugar

Agora que o tempo já passou por nós
E o seu trem ainda está por chegar
E o meu está muito atrasado...

Não sei para onde você quer ir
Eu tenho menos escolhas 
e estou um pouco mais cansado
Não quis ir para Japeri
quando você nasceu
Nessa época todo mundo ia pra lá

Não sei o que faço da minha angústia
O trem não chega
Não há trens para passageiros rebeldes
e eu fui condenado pela rede ferroviária
Dizem que sou exigente
Não é verdade
Eu só não quero ir para Japeri

Nestes dois anos foi mais fácil
esperar o trem
Imagina!
Uma espera com tantos beijinhos
com tantos sorrisos
sob a mira desses teus olhinhos tão verdinhos
Imagina!
Uma estação toda cheia só com você
Eu juro que até esqueci o trem
Só quando você se cansou de esperar o seu
é que eu me lembrei do meu
Todo mundo sabe que eu sou um passageiro chato
 
Já pensei em fazer o meu próprio trem
Mas os trens já nascem prontos 
E eu não quero passar por louco

Não sei se ainda sei esperar sózinho
Enquanto o seu trem não chega...

Claro
Você pode ir para aquele outro banco
Há sempre viajantes na estação
Mas enquanto o seu trem não chega...

Amargo a vergonho e orgulho
de ter ficado pra trás
Perdi a grande farra de Japeri

Você é quem sabe
Mas...
Eu até cheguei a acreditar na vida após os trens
viu?

Então
Pra quem você quer dar a sua alegria
Dê pra mim
Fica por aqui nesta estação
Atravessei o oceano para esperar o trem aqui

Bom...
Você....
Olha
Eu apesar de ranzinza também sou muito engraçado
Posso inclusive te contar piadas de português 
Posso também te contar de novo
todas as minhas histórias tristes
Sou versátil como um robô da Chevrolet

Minha linda
Você é quem sabe
Mas enquanto o seu trem não chega...
Rio, 30 de Novembro de 1998

Poema© :JoaquimESTEVES


segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O sequestro do sol

Poema-síntese

E logo após
um arroto da sorte
de mãos atadas ao lado torto das circunstâncias
e com uma esperança espetada na alma
desabei
e caí no útero gerador dos mundos

Fazia frio
e por momentos
esqueci-me do calor 
e da minha mãe

Adormeci enrolado num cobertor
de muitas névoas
Fiquei quieto
e vivi uma das minhas muitas mortes
num canteiro
com saudades da vida

De manhã
Olhei para o céu
e substituindo o sol
admirei o cinza e a arte
nos focinhos dos criminosos
que fabricaram o meu destino

E o destino
nasceu-me de xale
e cantando fado
Nasceu-me ibérico
pequenino e feio

Pendurei-me à cauda do continente
Escorreguei mil vezes e de mil maneiras
e só não me desintegrei no chão
porque o destino
na véspera
tinha sido nomeado meu protetor

Passei pelos dias
de cabeça baixa
Escalei o cume das noites
com angústia alta

Era estranha aquela parte do mundo
Qual seria o deus que o havia feito?
Por certo
um inimigo do sol

O meu sol estava enfermo
e eu era mais um inútil invisível
para aquela gente que morava sem luz.

Portugal, janeiro de 1990 

Poema© :JoaquimESTEVES

sábado, 13 de agosto de 2016

Cyber

Nunca deixei de caminhar pelas minhas esperanças
Conheci-as todas pelo nome
Esperanças vis
Esperanças vagas
Esperanças vãs 
Esperanças boas
Esperei
Esperei com o transe frenético dos sectários 
E com os sentidos sobressaltados
dos que espiam na noite escura
Esperei
Mudei de esperança
E me cansei
E certo dia com a cara de todos os dias
Nasceu uma Cyber esperança frágil
Mais uma vítima para a minha lucidez


Hoje que ela faz cinco anos
Nas minhas caminhadas
Sigo o seu rastro 
E de lá pra cá
Nada mais é digno  de se chamar esperança.
Rio, Dezembro de 2009

Poema© :JoaquimESTEVES

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Ninho na ventania


E agora que você fez ninho no meu coração?
E agora?
Quantas manhãs foram precisas 
para tecer esse cantinho precioso
de amor e bem querer?
Quantas folhas e gravetos 
tivemos que carregar nos ombros
para dar um abrigo aos meus sentimentos?
E agora?
Agora que você fez ninho no meu coração
Quantos raios de sol foram precisos
para iluminar a estupidez do meu coração obscuro?
E quantos anos devoramos
para fazer um lugar tão insignificante e tão grandioso em nossos corações?
Um dia
o frio cortante do relento
vai te ensinar a ficar quietinha
e a usufruir estática do calor prosaico
de um ninho quase banal.