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quinta-feira, 30 de julho de 2015

O banquete dos famintos

Os comedores de batatas

Van Gogh

Procuro a palavra mais forte
do último sermão do silêncio.
Procuro o canto livre 
dos que não falam.
Procuro o sussuro da gota d'água
que morreu na fenda do rochedo.

Procuro o vento orfão
que ondula pelo púbis da montanha.
Procuro-me no enigma das grutas
encravadas na escarpa dos corpos. 
Procuro-me na espiral abstrata
da fumaça que me mata.

Procuro-me na trilha quase apagada
dos que se encontraram
e nos rastro de lágrimas
dos que se perderam.

E quando penso que me achei
É tão pouco o meu achado.

Roma, 24 de Julho de 1997 

sábado, 25 de julho de 2015

Olhos que não veem

E o sol brilha mais uma vez
porque brilhar é o seu ofício.

O silêncio agoniza nas calçadas
esmagado pelos passos dos que têm pressa.

Pressa de viver
Pressa de chegar.

Há um prazo
uma data
um encontro 
e um compromisso.

Estão todos certos
Nada interessa
senão a ilusão costurada do terno e gravata
senão a possibilidade solene de ser alguém.

Nada interessa
senão construir a lógica e fabricar os destinos
Nada interessa
a não ser fazer da posse uma muralha
converter mistérios em cifras
e reduzir o grande milagre
à rotina da matemática.

E tudo muito simples e banal
mas eu ando nú
Recolhendo os farrapos da nossa condição
Perdido entre os tratados da inexplicação
Colecionando as ruínas acumuladas no coração humano
Juntando os pedaços rasgados de um absurdo.

Eu sou um louco
descabelado e desprezível
porque vejo um ponto negro no brilho do sol.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

O resto dos dias

Fecha-se o zíper do horizonte
Apertam-se os cordões de mais um dia
Abotoam-se as lapelas da luz
Veste-se o pijama da escuridão.

Derreteram-se as horas preciosas
da chance e da oportunidade.

Fecham-se os corações para balanço
E entre o prejuízo e o lucro
o traço irrepetível
de um caminho rápido e fugitivo
que parece ter medo de mim.

Rio de Janeiro, 24 de Março de 2002

terça-feira, 21 de julho de 2015

Por um triz

Bendita seja a nossa urina matutina 
Prova úmida da vida que nos fascina
Penumbra de mais um sol, mais uma mina   
Descerrar de uma cortina.

Começa a farsa 
Começa a trama  
Eu sou teu comparsa   
Tu és minha dama 
E lá vamos afoitos, despertos, em chama 
Fugindo da lama 
Driblando o drama
Farfalhando teus bicos, tuas pontas, a tua mama  
Querendo escrever histórias nos anais da nossa cama.

É hora dos gemidos, dos gritinhos, dos ais 
Hora de sermos animais 
Hora de atender aos teus soluços carnais
Ao clamor dos teus canais 
Às tuas dobras fatais.

Agora estou feliz  
Estou radiante pelo que te fiz  
Mas já basta de beber dessa matriz
Esgotou-se o script, pode deixar de ser atriz 
Nos meus espaços de dentro, algo me diz 
Que é infeliz 
Ser feliz  
Só por um momento, por um tempo, por um TRIZ.

Mas é preciso ser feliz  
Isso me desatina  
O que é que eu vou fazer se é aí onde tudo culmina?
........................................................................
Só me resta recomeçar e descerrar a cortina 
Bendita seja a nossa urina matutina.

Rio de Janeiro, 17 de Outubro 2001

Quando o poema é um problema

Eu que já tive rosas no jardim.
- Não, não é isso.

E o amor se descobre num trevo de 4 folhas.
-Não tem sentido. Não é isso que eu quero.

Agora sei que não só de rosas se faz um jardim.
- Que porcaria!

Mas as flores brotam das cinzas dos mortos
- Que trágico! Que doentio!

E o fio do teu olhar serve para custurar minhas meias. 
- Não podia ser mais ridículo!

Viver à sombra das perspectivas.
- Isso é retórica. Retórica, não. 

E onde estão tuas pegadas?
- Vai ser difícil achar. Ela só andava no asfalto e nas calçadas.

AS GOTAS MORTAIS DA TUA AUSÊNCIA
- Gostei dessa.

Vou ao mar mais próximo
Tomo um porre de brisa
Começa o meu mais novo poema.

Rio de Janeiro, 29 de Março de 1999
 

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Ragazza di vento

Maná do meu Saara
Pratchna-paramita
Panamá e coisa rara
Nirvana della mia vita.

Como é suave me atropelar nos teus beijos
e entre pétalas de carne
desfolhar os meus desejos.

Como é sereno me pôr na tua tarde
e entre acordes de cabelos
curar a ferida de amor que arde.

Como é sã nossa loucura
Como é lenta a queda em teu precipício
Como é vã toda a tortura
Como é puro o motivo do nosso vício.

Como é bom voar teu alto-mar
Desfazer o coração em pirilampos
Como é bom teus olhos decifrar
e luzir no noturno do teus campos.

Búzios, 14 de Janeiro de 1990

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Síntese

Subo a bordo da noite
Sigo um espectro em sua pista
Sinto o silêncio e seu açoite
É solidão à vista.

Solidão, my way
Útero de meus poemas
A mulher que nunca amei
Bíblia de dúvidas e teoremas.

De novo
Eu e a minha sombra
O diálogo entre eu e mim
Susto que não mata, assombra
Véspera do próximo fim.

Lisboa, 29 de Março de 1995

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Sônia

Era uma vez
Eu
que conheci todos os enlevos do leito
do Rio de Maio
guiado por ti.

Flanamos uma noite toda
preparando a luz do sol.

Amanheci o 12 de Maio
com a cara amassada
pelas sombras fortes do teu corpo.

Parido de noite
Nasci do teu útero grávido de alegria.
Traí meu egoísmo
enganei minha insônia 
e dormi contigo.

Estalaram todos os ossos
da minha coluna emocional
Fiquei ereto
Abriram-se todas as válvulas cardíacas
e flui sangue e encanto
No meu eletroemociograma
O resultado é o ar da manhã
um pôtro no prado
olhando para o céu
dando os primeiros passos 
e feliz por ter nascido.

Ter 25 - fazer 25
Tudo dependeu de dois balõezinhos no teto
duas velas no bolo
e do teu riso largo
que eu furtei na penumbra
e colei na minha cara.

Era uma vez...
E agora
é minha vez. 
Rio de Janeiro, 12 de Maio de 1985

domingo, 12 de julho de 2015

Soluços e soluções


Trago
a mágoa que trago
Pago o preço e divago
Julgo que não mereço
e indago
Indago e vago no lago mago do meu presente
Afago o berço louco da minha mente
Esmago o terço ôco de quem não sente.

Canto
o canto tonto dos sonhos
Conto
os desencantos
São quantos?
São tantos
São prantos
São mantos medonhos.

Procuro sentido
e não acho
No escuro acendido o facho
o facho da fêmea e do macho.

Salva-me a poesia
que me recria e me guia
e o poema que alivia
o dilema e a agonia.


Besançon, 18 de Fevereiro de 1997

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Stop

Olho as ruas
com os olhos lavados de uma criança.

Assisto à parada
deste exército de blue jeans
que marcha com a perspectiva
da batalha mais próxima.

Olho bem fundo
nos olhos da multidão
e não vejo a minha cara.

Escuto os passos
Gravo os sons
Recebo as cores.

____________________________

Respiro o ar que a multidão exala
Há oxigênio e sentimentos puros
Há perfumes tóxicos
e podres formas de sentir.

Desisto da minha insensata procura
Furo os olhos
e cego a primeira esperança deste dia
que nasceu de manhã 
e acordou comigo.

Ainda aposto um último olhar
nos trajes destes andarilhos urbanos.

Mas eu estou certo
Não há mesmo ninguém vestido de mim. 

Rio de Janeiro, 21 de Novembro de 1999

terça-feira, 7 de julho de 2015

Transparência

Queria uma mãe
macia e acolhedora
como os travesseiros do Imperador
E se possível
transplantar os meus sentimentos
numa cirurgia doce 
de amor e doação.

Trago a alma descalça
e cheia de fome
que num mundo sem pão
mendiga beijos, música e corações.

Cresço e me desiludo
Sonhei
Mas quem não sonha?
É o risco e o perigo invisível
dos que avançam sobre o asfalto.

Rio de Janeiro, 5 de Junho de 1998

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Uma Sarjeta - Duas Versões

1ª VERSÃO
Olha só aquele mendigo fajuta
Um zero, um nada, um mal nascido
Filho de pai desconhecido
Filho de mãe - suprema puta.

Dá uma olhada naquele mendigo
Coitado! Não se compara comigo
É um sujo que até disputa carniça de urubu
Não é como eu que sou do wisky, do caviar e do peru.

Olha só aquela sarjeta
Esses caras só são da mutreta
Como pode! Sem telhado, sem alvará
Vou chamar o delegado. Ele o multará.

Espia só aquele vagabundo
Que tristeza! Que bicho imundo!
Só mesmo a bofetada
É preciso ser do bom, do business e da trepada. 
2ª VERSÃO     
Eu sou o tal mendigo
Por quê? O porquê não digo
Desconheço o que me fez assim
Afinal, nem eu mesmo sei de mim. 

Eu sou o mendigo, o vagabundo
Mas mendigo não é castigo  
Mendigo é fugir do mundo 
Por não suportar tanto perigo.

Eu sou um mendigo, um mendigo sem nada
Mas o tempo ainda me resta
Para avaliar o que não presta
Para discernir a coisa errada.

Eu concordo, eu sou pária
Não tenho conta bancária
Nem mesmo o sexo pratico
Mas apesar de tudo confesso
que me sinto podre de rico. 

Paris, 15 de Julho de 1997        

sábado, 4 de julho de 2015

Viagem

Foi num dia incandescente
de horas rubras e abrasadoras
Num dia tóxico,torto e animal
Foi num dia assim, infecto e febril
que delirei sem pudor e legalizei minha loucura

Delirei e vi
Vi os negros chifres dos enganados
Vi os alvos dentes da barata
e os bons fluidos do inseticida

Vi
Vi e estremeci com os dedos do desejo
ressoando atrás da porta
Estive na festa das bactérias no beijo dos enamorados
E assisti impassível ao suicídio dos neurônios
no crânio dos muito burros

Também vi os lábios que se fundem
na mais funda agonia
e  a dança dos sonhos e da fumaça
no leito dos que não dormem.
 Toulouse, 15 de fevereiro de 1995

Words

AMOR, VERDADE, HOMEM, VIDA, MUNDO, SERIEDADE, são palavras vilipendiadas que soam nos covis dos assassinos, nos corredores dos prostíbulos, nos telefones dos usurários, nas latrinas dos espoliados e nas salle-de-bains dos espoliadores.

QUEM EJACULA AMA. O AMOR É BIOLÓGICO.

QUEM TEM A TONALIDADE VERDE DO DÓLAR É  A VERDADE. A VERDADE É VERDE.

QUEM PENSA EVENTUALMENTE UMA VEZ POR SEMANA. DIZ QUE É UM HOMEM. O HOMEM É UMA CRISE RARA DE RACIOCINITE.

QUEM COME E DEFECA DIZ QUE TEM VIDA. A VIDA É UMA PROFUSA E MILENAR DIARRÉIA.

QUEM CAI E SE LEVANTE E TORNA A CAÍR E NOVAMENTE SE LEVANTA, DIZ QUE ESTÁ NO MUNDO. O MUNDO É UM ACIDENTE GEOGRÁFICO EM FORMA DE BURACO.

QUEM NÃO QUER SORRIR PORQUE TEM OS DENTES CARIADOS, DIZ QUE É SÉRIO. A SERIEDADE É UMA INCURÁVEL PATOLOGIA ODONTOLÓGICA.

Quanto a mim, conheço o mundo de vista e a felicidade por ouvir falar. O amor, vi outro dia no cinema. Da vida tenho muitas lembranças e da verdade uma fotocópia.

Vila Nova de Gaia, 15 de Maio de 1990