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terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Anônima

Naquela única vez
Foi uma fábula - Era uma vez
Foi o acordar da química loca
Foi starry night 
No céu da minha boca

Naquela única vez
Fiz música nos teus confins
Fiz um blue céu no teu blue jeans
Fiz de teus seios a batuta
Fui maestro nessa luta

Naquela única vez
Eram precisos olhos castanhos
Fomos iguais fomos estranhos
Foi mais que say grace
Foi bom
Foi face to face

Naquela única vez
Escapou-me o teu nome
Foi a a pressa foi a fome
Não importa
Valeu a pena
Minha doce minha anônima Madalena.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Avesso


Chovia lá fora
quando saí do botequim
Distanciei-me um pouco
e ouvi passos atrás de mim
Rodei o esqueleto
e me deparei com um homem
que era mais ou menos assim

Era um desses homens formosos
de cabelos azuis 
e olho louro atrevido
Não digo olhos
porque o infeliz me parecia surdo
de um olho e não do ouvido
Aliás, diga-se de passagem
era lindo
Parecia um batráquio
com sinais de miopía
nas trompas de eustáquio

Era um desses homens elegantes
Prêt-à-porter
Trajava calças de colarinho cor de urinol
Calçava sapatos de vidro fumê

Era um desses homens másculos viris
Um ferrabrás
que usava batom nas narinas da frente
e soutien nos tubérculos de trás

Era um desses homens magros bem talhados
Uma esbeltez
Com uma papada inchada 
que dava pra três
Com uma pança obstétrica
de trigêmia gravidez

Era um desses homens modernos
da geração fitness
Não usava bigode
tinha um beiço top-less
Era uma finesse
da cabeça aos péss

Aqui termino as memórias do meu último porre
Sem saber até hoje o que foi o que eu vi
Não sei se era só o efeito do porre
Ou se era mesmo real
esse homem que eu vi.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Amor visceral



Amo tua ptialina, tua saliva cristalina
Amo teu palato, tuas papilas, a tua vitamina

Amo teus ductos, tua seiva, tuas hemáceas
Amo tuas artérias, tua proteína, 
tuas veias violáceas

Amo tua penugem, teu púbis sacro
Amo-te sem medidas, amo-te um amor macro

Amo teu óvulo mensal
Amo teu sangue menstrual
Amo todos os átomos
que fazem de ti
uma bomba anatômica.

sábado, 5 de dezembro de 2015

A aurora dos teus olhos

Os meus olhos pretos
Não são pretos
São duas gotas de escuridão

Nos meus olhos é de noite
E foi por não poder fechá-los
Que um artista das sombras
Gravou neles 
toda a história do escurecer
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Os meus olhos  pretos
Não são pretos
São os teus na minha cara
________________________________________
Nos meus olhos é sol nascente
E foi de tanto abri-los
Que uma menina da luz do sol
Derramou neles
a lentidão exata do amanhecer.

domingo, 29 de novembro de 2015

A conspiração dos trópicos



Promessas de sol / Sentença de chuva
Acordes de violino / Orquestra de sapos
Saudações do branco / Visitas do amarelo

Traços de vento / Hálito de vendaval
Pegadas do riso / Campos de fogo
Mentiras da espera / Palavras da solidão:
- E tudo não passa de uma demência de verão.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Água de prata


O meu amor é o mais secreto dos segredos
Vive na noite, nas sombras e nos degredos
Paira no nada, nos ermos, nos descampados
Grita nos vales surdos e abandonados

Guarda em lugar amado
O beijo que te dei
sem nunca te haver tocado
Em mim, fica a perpétua saudade
desse minuto que te roubei.

sábado, 21 de novembro de 2015

Biografia



Na busca de uma provisória eternidade
Vasculhamos os frutos podres de cada dia
Sacudimos os ombros das coisas
Esprememos os gomos da vida

Temos ânsia

Temos sede
Temos seca a nossa sorte

E em nome da sede

Nos armamos de paralíticas ilusões
Vamos aos templos
Vamos às guerras
Vamos às bruxas
Vamos às luas

Queremos água

Queremos seiva
Queremos o suco vivo da vida

E apesar da sede

Acreditamos no love for ever
Somos unidos - é a sede que nos une
Somos irmãos - até onde a sede permite
Apesar da sede 
Bendizemos essa sede maldita

E quando já estamos acostumados com a sede

Há o erro da células
O descomeço 
E o fim da sede.


quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Dias úteis / Vidas inúteis


Faz um tempo inclassificável no Rio
A multidão inundada pela névoa
Parece-me mais clara e menos feia

Os transeuntes
Vestem uma cara serena e pacificada
O tráfego 
Ondula num côro exausto e desafinado

O Rio parece um pátio
de loucos convertidos
Foi a neblina que os converteu
Foi esse falso cinzento de setembro
que  mandou da atmsofera
a doce ilusão de que tudo vai bem.

sábado, 7 de novembro de 2015

Caminhos de cristal


Havia uma única estrela no céu
Era hora de voltar
Olhei para trás.

Os caminhos que andei
eram espirais de fumaça
O meu tempo era uma ilha
e a vida não era ali.


Juntei meus restos vitais
Mirei-me no espelho d'água
Assustei-me
e fugi de mim.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Círculos


Escolho o passo mais firme
Para a estrada mais reta
Sonho o sonho mais rosa
Para a meta mais certa

O mundo é geométrico
A vida é uma fórmula
Viver é ousar no trapézio
e evitar as perpendiculares
O prazer é um ângulo oblíquo
A esperança, uma paralela infinita
E a felicidade, um teorema

Andar é preciso
Chegar é vital
Achar é fundamental

Mas eis que se foi o meu tempo
das retas
Foi de tanto andar
Que se curvaram as retas
Que se fecharam os círculos.

sábado, 31 de outubro de 2015

Complexo e com nexo


Eu que te amei anticonstitucionalíssimamente
Consumi-me ensandecido no estro evanescente
De uma faúlha de amor mal fadado.

De olhos postos na frincha melíflua
de uma possível quimera
Jugulei-me demente
na molúria triste da madrugada

Absorto no menálio imorredouro
da paisagem nílica
Embriagado pelo nimbo fugaz do céu
Pelo néctar perpétuo de tuas melenas
Esqueci-me talvez de sentir
a dança do aroma
das magnólias que padeciam 
na ervagem radiante

Quando já não restava nada
Ou quando brilhava tudo
Menos a futilidade já muito gasta
de uma frase muito pouco erudita:
Eu te amo.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Poema da eternidade


Poema da eternidade
Moro num corpo que não é meu
Alugo o tempo, as tripas e o coração
Defeco, amo e odeio
Esta é a minha condição.

Vivo num espaço que não é meu
E às vezes, eu sou ateu
E quase sempre sou de ninguém.
Mas afinal quem sou eu?
Eu que me observo e não sou eu
Eu, habitante de um corpo que não é meu
Nada é meu.

Nem o devaneio que acabei de fabricar
com as sombras e o breu da noite
Nem é meu este resto de sol
E nem é meu o brilho do olhar da mulher
que me escolheu
Muito menos o zumbido das moscas
que sonorizam estas tardes de verão.

Moro num corpo que não é meu
Morro num corpo que não é meu

E qualquer dia
Depois de amanhã(se amanhã houver)
O corpo é teu
O corpo é teu
Ó terra profunda e maldita
que dás a vida e hospedas a morte
O corpo é teu
Ó terra traidora e bendita
O corpo é teu.

E quando eu for o adubo da terra
Viverei para sempre
Nos sulcos das folhas
Na seiva dos caules
No perfume e no sangue das rosas.

Eu serei da terra
Eu serei a terra
Estarei vivo
Nas avalanches
Nos terremotos
Nos vulcões
e nos maremotos.

A Eternidade não transcende a terra
Deus não mora no céu
E as estrelas que cintilam lá no alto
não são para mim.

A Eternidade
Tem a idade da terra
A Eternidade é a terra
A terra é eterna.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Espaços e vazios


Falta-me uma réstia de sol
Uns metros de chão
E um pouco de mim

Falta-me engatinhar
Brincar com a terra
E não saber falar

Falta-me uma choupana
Quatro panelas
E alguns trapos gastos

Falta-me um inverno
Uma lareira
E o respirar dos gatos

Faltam-me cinco dedos
Uma mão
E um empurrão

Faltam-me dois lábios
Um par de olhos 
E um coração 

Falta-me uma praia
Uma imensidão de areia
E dois pés descalços

Falta-me um domingo
Dois copos
E um vinho bom

Falta-me uma noite
Um violino
Um amor
E um infinito.

sábado, 10 de outubro de 2015

Férias no inferno


Aceito e assisto nesta noite
que não quero que tenha fim
à germinação 
e ao nascer dos frutos
de uma antiga solidão

Fecundou-a o silêncio e a penumbra
de uma certa atmosfera
repleta de nada e de coisa nenhuma

Caminho pelas ruas íngremes 
da meia-noite 
Desço a ladeira desta noite inteira
calçada com os cristais
da minha pele toda

Recolho o vácuo
Encho o meu cesto de rendições
e acaricio sem querer
os filhos e os frutos
desta velha solidão
que agora é mãe e árvore
e sempre foi minha ancestral

E amanhã
arderão os filhos e os frutos
sob o fogo do sol
Se a manhã quiser.

Na Jugular Literatura

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Humana condição


Acordar
Saudar o dia
com um café pontual
Rever a rua
e planejar a caminhada

Beber o leite
e sofrer por antecipação
Comer o pão
e sonhar mais uma vez

Sonhar que o mundo é meu
Sonhar que me achei
numa manhã de setembro
Sonhar com olhos pacíficos
pousados no meu ombro
Sonhar que me vi dançando sobre o arco-íris
mascando chiclete e falando inglês:
I'm so happy! I'm so happy!

Sonhar contigo
Sonhar comigo
chegando ao entardecer
de mãos dadas com o último raio de sol.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Isso

Viver é isso
Errar o troco
Trocar um pouco
Levar um soco
Passar por louco

Perder o mapa
Achar a mina
Mudar de capa
Fugir p'ra China

Plantar azul
Colher amarelo
Rumar p'ro sul
Virar branquelo

Viver é isso.

Sonhar moinhos
Fechar o quarto
Cortar caminhos
Sofrer de fato

Tomar juízo
Perder os dentes
Conter o riso
Vender os pentes

Viver é isso! 

sábado, 26 de setembro de 2015

Jugular

Reconstituo o itinerário dos loucos furiosos
Que deliram e são normais

Queria ser como os que matam as moscas
O tempo e o bom da vida
 
Treino todos os dias
Os cães da minha revolta
Eu queria ser cruel

Perco o fôlego no oxigênio da minha
lucidez
Fico bêbado com o cheiro  da minha
história
Desmaio nos braços das minhas
sangrias
Eu tenho raiva

Faço a minha mágoa em pedacinhos
Destilo o açucar das minhas desilusões
E me enveneno com as gentilezas da minha
espécie

Queimo este absurdo comportado
Lavo as minhas convicções na água da chuva
E me perfumo no môfo das minhas esperanças
Eu tenho ódio

Canto no banheiro
A mentira e a merda
que brota de almas imaculadas
E está tudo podre

Dôo o puro dos meus olhos
aos que inventaram o mundo
Ofereço o meu coração ileso
à Bolsa de Valores 
e à ganância dos poderosos.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Money

Money one

Teus olhos são lindos zeros
Teus cílios, formosas vírgulas
O bolso é mais forte que o Eros
Meu amor, maior que os Calígulas

Amor, um C.D.B. na minha vida
És a commoditie desejada 
A Letra de Câmbio vencida
Minha Caderneta mui amada

Teu sorriso é um encantamento
Teus seios, o meu desterro
Teu traseiro, meu descarrilamento
No teu corpo aceita-se aterro

Tu que me deste venturas mil
Tu que foste minha Aplicação primeira
És meu lábaro, minha bandeira
És meu Banco do Brasil.
Money Two 

Pelas minhas contas 
Devo-te um I LOVE YOU
Mas não penses que me montas
Na cama terá que ser mais TRUE 

Tu que me chamas de embusteiro
E vives para me amolar
Mal sabes
Que um AI até vale um dinheiro
Mas um AH vale um dolar

As carícias estão em alta
Pois quero amanhã sem falta 
Todas aquelas todas aquelas apalpadelas
E dá-me o troco em roçadelas

Pelo que diz o jornal
A inflação é fatal
Terei que investir meu material
Em mais virgem matagal. 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Milésima vomição - 1ª Edição


Escrevo pra ninguém
Mas falo para o mundo inteiro
E digo-me tudo o que não gostaria de escutar

Eu não queria escrever
Eu nem sei se gosto de escrever
Mas só quem sentiu um dia
Vontade de vomitar
Conseguirá me entender

E agora
Neste princípio de náusea
Neste começo de madrugada
Neste meio da rua
Nesta solidão e meia
E neste fim de espera
Não tenham nôjo do meu vômito
Não fui eu que criei o nôjo
Nem fui eu que inventei o vômito

Sirvo-me apenas
Das contrações involuntárias do meu espírito
Para expelir os restos desta comida ortodoxa
Que me enfiaram goela abaixo.

E entre os pedaços 
Que bóiam nesta golfada abjeta
Está a carne da minha revolta
Está o rabo do absurdo
Está a gosma da mentira
Está o braço da injustiça 
E os dedos intactos da morte.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Márcia

Nasceu uma rosa no asfalto
Justamente ali
Onde os sapatos de tantos idiotas
Trituram os melhores projetos
dos que sempre sonharam sem pudor
numa orgia diurna de apostas e esperanças.

Nasceu uma rosa no asfalto
Exatamente ali
Onde as paredes de concreto
Delimitam os cérebros e a liberdade.

Precisamente ali
Onde crescem os filhos do plástico 
e da Coca-Cola
Precisamente ali
Onde o ferro domina
e o Capital devora.

Nasceu uma rosa no asfalto
Ali
Onde as emoções nascem nos computadores
E o amor falece nas mesinhas de escritório.

Exatamente no asfalto
Essa terra estéril
Essa terra própria
pra correrias inúteis.

Nasceu uma rosa no asfalto
E todas a olharam
Mas só eu a vi.

E fui eu que a colhi
E a guardei com segredo e cuidado
Num vaso poderoso
chamado paixão.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Made in night

Noite
manhã dos meus fantasmas
Eu tenho medo.

Tenho medo dos mortos
da cidade morta
Tenho medo dos vivos
Tenho medo de mim.

Porque Lúcifer caiu da lua
e se esparramou no meu quarto.

Cada estrela
é um rosto dos que não me amam
Cada nuvem
a lixeira dos meus erros 
E as horas
são meus olhos que me fitam
Ó lua, minha mãe
O céu está em chamas.

sábado, 15 de agosto de 2015

Não

Não quero
essa vidinha retilínea, rasa, plana
cheirando a Omo
Essas emoções civilizadas
Essas pessoas regulares
Esse condicionamento fisiológico.

Não quero
Esse perpétuo "vai melhorar"
Essa infundada e infindável espera.

Não quero
Essa estupidez consentida
Esse consenrimento tácito e oficial
Esse romantismo desesperado
feito de um amor que já ruiu.

Não quero
Este mundo em fatias
Disputado por loucos famintos
Essas bundas de domingo
nesses bancos domingueiros
com esses papos de segunda-feira.

Não quero
Esse suicídio prêt-à- porter
Tão lento e mascarado que ninguém vê
Esse delírio cinematográfico
Esse conformismo epidêmico.

Não quero
Esses descobridores do óbvio
Esses comentaristas sem comentários
Essa vegetação capilar
cobrindo testas estéreis.

Não quero
Essa comicidade gratuita
Esse risinho viciado
Esses palhaços sem circo.

Não quero
Essa bestialidade perfumada
Esse fedor desodorizado
Essas feras sem jaula

Não quero
Esse credo monetário
Essa eucaristia de número
Essa religião de papel.

É tudo isso que eu não quero. 

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Obsessão

São as pombas
São as bombas
São as trombas da criação.

São os ratos
São os fatos
São os tratos da inanição.

São os rombos
São os tombos
E os lombos da perdição.

São os casos
Os descasos
E os vasos da imensidão.

São os passos
São os traços
E os fracassos da multidão.

Muito raras
São as caras
Não as taras da ocultação.

Muita estética
Muita técnica
Nossa herética visão.

E que pena
Não havia cirurgia
P'ra agonia do coração.

São Marias
Avarias
E utopias de pés no chão.

E os amores
São clamores
E favores da tua mão.

E a procura
Não tem cura
Por ser pura obsessão.

sábado, 8 de agosto de 2015

O percurso de uma noite sem lua

Acendi mais um cigarro
Atravessei a ponte
O Sena já dormia profundamente
Escondendo no seu lôdo
O desespero dos seus suicidas.

Parei por alguns instantes
em frente ao Hôtel de Ville
Observei bem todo aquele monumento
Admirei o efeito das luzes
E prossegui a caminhada.

Pisei o calcário da Rue de Rivoli
E como um intruso
percorri-a bem devagar.

Flanei por outras ruas
E reduzi o passo na Saint-Denis
Caminhava lentamente
Dava passos calculados
Como se a deflorasse cuidadosamente
com o meu andar
Para mim, aquela era a primeira vez.

Desfilava por ali
Escoltado de perto
Pelos luminosos indiscretos
dos porno-shops.

Mais adiante
Algumas e certas mulheres
Negociavam com a fisiologia
e expunham audaciosamente seus corpos.

O prazer custava trezentos francos
e a AIDS era de graça.
Et alors, tu viens?

Nas calçadas 
Erguia-se um exótico santuário de putas
que abria as suas portas
que abria as suas pernas
para os inveterados adoradores do escuro.
On y va?

Entrei no Hard-Sex
e senti-me perdido
no meio daquela densa floresta sexual
Os pênis eram árvores robustas
e as vaginas suas raízes profundas.

Caí em algum buraco
daquela geografia do desejo
e fiquei sujo com a poeira da minha solidão.

Continuei na Saint-Denis
As esplanadas dos Cafés estavam repletas
Os casais trocavam beijos e carícias
entre goles de panaché.
Senti inveja e reconheci
que naquele comboio de boêmios
eu era um dos clandestinos.

Para disfarçar
Tomei um café
O café custava dez francos
e angústia era brinde da casa.

Fui parar numa praça qualquer
sentei-me no banco
para esperar a luz do sol
e assistir às exéquias da noite.

Quando o sol ameaçava abandonar
o útero do infinito
para viver entre nós
Resolvi voltar.

Acendi o último cigarro
Atravessei a ponte
O Sena já estava bem desperto
preparando o seu leito
para receber o primeiro Bâteau Mouche
Alisando o seu lôdo
para acolher o próximo desesperado. 

Paris, 12 de Janeiro de 1988

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O amor - esse desconhecido

Amor
Não quero pronunciar-te 
com medo de envelhecer-te.

Amor
Palavra senil
que já conheceu tantos lábios.

Navegaste no cuspe dos reis
Deslizaste na língua das rainhas
Escalaste os dentes dos nobres
e desabrochaste forte na boca dos miserÁVEIS.

Quantas vezes te prenderam num papel 
e te chamaram casamento
Quantas vezes te arrancaram do teu lar
o coração
te espremeram entre um par de pernas
e te chamaram sexo.

Amor
As alcovas estão manchadas por um nome
que pensaram que fosse o teu.

Já te puseram tranças
Pintaram-te os lábios
e te chamaram mulher.

Amor
Em quantas espécies de lágrimas
já te molhaste?
A propósito
Vi-te escondido nos olhos da minha mãe.

Quantas vezes
quis cumprimentar-te
e me calei 
por não saber o teu nome.

Amor 
tens tantos pseudônimos
que ainda não sei como te chamas
Alguém roubou  a tua Certidão de Nascimento.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O cemitério dos sonhos

Queria ser um desses poetas fulgentes
Falar dos lagos reluzentes
Dos oblíquos raios da loura luz
Do mundo plano, sano e sem cruz.

Queria ter o fulgor
Para roçar todos os ângulos do amor
Para cheirar rosas purpurinas
Para gostar de coisas pequeninas.

Queria poder ainda esperar um primavera Venturosa
Colher uma estrela saborosa
Degustar o mel do silvestre arvoredo
Pensar que não é tarde - ainda é cedo.

Queria ver meus sonhos ressuscitados
Dói-me vê-los assassinados
Por que alguém os mataria?
Talvez para que o meu querer seja apenas utopia.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O banquete dos famintos

Os comedores de batatas

Van Gogh

Procuro a palavra mais forte
do último sermão do silêncio.
Procuro o canto livre 
dos que não falam.
Procuro o sussuro da gota d'água
que morreu na fenda do rochedo.

Procuro o vento orfão
que ondula pelo púbis da montanha.
Procuro-me no enigma das grutas
encravadas na escarpa dos corpos. 
Procuro-me na espiral abstrata
da fumaça que me mata.

Procuro-me na trilha quase apagada
dos que se encontraram
e nos rastro de lágrimas
dos que se perderam.

E quando penso que me achei
É tão pouco o meu achado.

Roma, 24 de Julho de 1997 

sábado, 25 de julho de 2015

Olhos que não veem

E o sol brilha mais uma vez
porque brilhar é o seu ofício.

O silêncio agoniza nas calçadas
esmagado pelos passos dos que têm pressa.

Pressa de viver
Pressa de chegar.

Há um prazo
uma data
um encontro 
e um compromisso.

Estão todos certos
Nada interessa
senão a ilusão costurada do terno e gravata
senão a possibilidade solene de ser alguém.

Nada interessa
senão construir a lógica e fabricar os destinos
Nada interessa
a não ser fazer da posse uma muralha
converter mistérios em cifras
e reduzir o grande milagre
à rotina da matemática.

E tudo muito simples e banal
mas eu ando nú
Recolhendo os farrapos da nossa condição
Perdido entre os tratados da inexplicação
Colecionando as ruínas acumuladas no coração humano
Juntando os pedaços rasgados de um absurdo.

Eu sou um louco
descabelado e desprezível
porque vejo um ponto negro no brilho do sol.